segunda-feira, 10 de setembro de 2012


Pra não esquecer de Bukowski e de minha vida irrelevante



Tinha olhos nada machadianos, porém, de ressaca. Não eram misteriosos e enérgicos, eram mortíços e inertes. Olheiras profundas sublinhando e um vermelho aguado preenchendo olhos da mais impossível falta de beleza.
http://complejo.deviantart.com/

Dormira duas horas, talvez menos; bebera três garrafas, talvez mais. Nada importava. Uma menina bonita de pernas finas e beleza comum tagarelava com os dedos ao celular, sentada de forma que ficava de perfil para Matheus, empolgada com algum filhinho de papai com o qual trocava mensagens dissimuladamente inocentes - apesar do teor simpático das mensagens, era certo que o cara só queria comê-la. Matheus pensou em avisar, mas quase deu risada de si mesmo ao repensar em fazê-lo. Era completamente irrelevante

Alguém apontava o lápis - que diabo de pessoa aponta um lápis? Seu estômago se revirava, talvez fosse vomitar, talvez dormir, talvez ambos.

O professor balbuciava em tom grave (seria um barítono? Tenor? Com certeza não chegava a ser um baixo) algumas palavras as quais, no atual estado do garoto, pareciam quase ininteligíveis. Tudo que Matheus fazia era torcer para que o mestre não visse o cair de suas pálpebras pesadas fechando os olhos úmidos e rubros durante segundos, talvez minutos.

Um idiota que usava uma camisa social e um sapatênis realizava um ritual frenético com seu olhar: Professor, caderno, professor, caderno, e anotava as palavras graves com linhas finas e letra cursiva completamente incompatível com a voz que as recitava.

Enfim o inevitável aconteceu. Alguém finalmente fez alguma pergunta irrelevante e fútil. Ainda mais fútil que o próprio assunto da aula. Ainda mais irrelevante que todas as irrelevâncias supracitadas. Uma dúvida qualquer, puxassaquista, feita com o objetivo de demonstrar conhecimento ao tenor (agora tinha já a certeza de que a voz era de tenor). Uma pergunta de resposta irrefutavelmente lógica e previsível, uma busca pela afirmação da própria certeza, previamente embasada no frágil conhecimento científico do aluno sobre o não muito menos frágil conhecimento científico geral - e foi a gota d'água.

O estômago se revirou, ficou a ponto de vomitar, sentiu o amargo ácido alcançar levemente o fundo da boca, inundando vagarosamente o espaço entre a língua e os últimos dentes, porém, foi feliz em sua brava batalha para engolir o produto de seu estômago.

http://lowery.deviantart.com/
Segundos, minutos depois, Matheus roncava babando em seu próprio braço apoiado na carteira escolar da universidade com seus olhos de ressaca - VERDADEIRAMENTE de ressaca - coberto pelas não menos pós-alcoólicas pálpebras pesadas. E sonhava com uma mulher de grandes coxas e peitos com uma estranha voz barítona.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Vida e morte de João Ninguém

VIDA E MORTE DE JOÃO NINGUÉM



Já nascemos na sempre finita luta Darwiniana pela vida: A batalha por espaço, adaptação ao meio, comida, começa no eliminar de líquidos dos pulmões, logo depois de abandonar o cômodo útero e tomar uns "tapas" do médico, que é procedido pela primeira leva de ar que invade o corpo. A primeira batalha pela vida, é, para muitos, a derradeira. A morte não é só um medo, é o propósito da vida de todos: O principal objetivo da quase totalidade dos seres humanos é, por mais controverso que seja, evitar o fim da vida, ainda que nenhum tenha conseguido fazê-lo até hoje por mais de 131 anos.

 Todos os objetivos mundanos que nos são propostos pela sociedade (e normalmente aceitos por nós como indivíduos) praticamente desaparecem fronte a possibilidade de perder a vida. Abrimos mão de tudo: Diploma, dinheiro, família, amigos, ética. Menos da vida. Portanto, apesar de perseguimos certas coisas em nossa breve existência, essa labuta é limitada pelo nosso medo da morte e da solidão.

Mas, como supracitado, estou falando da maioria, não da totalidade dos seres humanos que habitam esse planeta.

João saía do consultório do médico. Era só mais um em meio ao caos urbano de uma cidade qualquer em um país qualquer, cheio de pessoas quaisquer que tinham um trabalho qualquer e marchavam feito zumbis entre os prédios carregando dinheiro e coisas que poderiam trocar por dinheiro, com o qual comprariam outras coisas que as manteriam vivas por mais tempo. João não era uma pessoa qualquer.

O homem de aparência comum costumava ser um deles, dos zumbis marchantes, até entrar naquele consultório. Havia seis meses que começara: Acordara um dia um pouco enjoado, e ao se olhar no espelho enquanto  lavava o rosto apressado, atrasado para um compromisso, se viu um pouco mais amarelado do que sempre fora. Em um mês estava amarelo como uma casca de banana e seis quilos mais magro. "O estresse do trabalho está me matando" pensava "vai passar...". Não passou e seis meses depois saia do consultório do médico qualquer com diagnóstico de câncer.

João ia morrer. Todos vamos, mas ele provavelmente morreria antes de quase todas aquelas pessoas teoricamente saudáveis que o circundavam naquela rua movimentada e não havia nada que pudesse fazer senão caminhar até o carro, dar a partida, ir para sua casa, jantar com a mulher e o único filho, dormir, acordar, lavar o rosto apressado, atrasado; olhar-se no espelho, amarelado; caminhar até o carro, dar a partida, ir para o trabalho, trabalhar, e depois caminhar até o carro novamente. E durante todo esse tempo, ele sabia, não pensaria nem ao menos um segundo em esposa, filho, dinheiro, carro, trabalho. Somente na morte. João não caminhou até o carro.

Sentou-se no primeiro café que encontrou e começou a pensar. O que devia fazer antes de morrer? Pensou em viagens, mas logo descartou a possibilidade por ser muito supérflua: De que adianta criar memórias que serão acessadas tão poucas vezes após a viagem. Após longos minutos de filosofia barata, percebeu que, de certa forma, o alegrava não precisar trabalhar para ganhar dinheiro. Nem de dinheiro para comprar bobagens que nunca usaria na vida (como uma esteira - por que diabos havia comprado aquela maldita esteira?) e outras coisas do dia-a-dia que o faziam sobreviver por mais tempo como comida e serviços de saúde. Não queria mais lutar por bobagens superficiais - e nem pelas profundas. O amor da mulher, do filho, dos amigos, ia-se com ele para o cemitério em alguns meses.

Percebeu, então, que todas as outras coisas - as dos outros - também iriam para o cemitério. Talvez não tão em breve quanto as dele, porém, todos partiriam: Nos próximos segundos, minutos, horas, anos... Todos iriam de certa forma, findar. Mesmo que deixassem algo para a posteridade, nas próximas dezenas, centenas, milhares ou milhões de anos a própria Terra desperdiçaria todo o trabalho humano ao acabar-se ela própria. Começou a divertir-se, por breves segundos, pensando em como lutamos em vão para estender uma existência na qual a principal meta é estendê-la. Era um... "como se chama..." pensava. "SIM! Um paradoxo!". A felicidade é uma das metas, mas não era A meta. A meta era a sobrevida! PRECISAVA escrever tudo isso num papel! Sim! Escreveria um livro, que seria amplamente divulgado, fariam teorias sobre ele, ganharia um prêmio nobel post-mortem! E todos saberiam de seu trabalho até que, por fim, felizes ou tristes, morreriam. Todos.

Empolgava-se e se desempolgava em seus devaneios, mas ao término do café amargo, a única conclusão que chegou é que não queria mais participar daquele paradoxo louco. Nesse momento teve uma situação psicológica ímpar: estava infeliz e satisfeito: Por saber que a felicidade era só um conceito humano abstrato e fútil, uma descarga de neurotransmissores que buscamos.

No dia seguinte, no jornal local, anunciava-se a morte de um homem. Um suicídio filosófico, sem depressão, sem psicose. Com câncer, mas não como causas mortis (ou seria?)
No meio do século seguinte estavam todos mortos das mais variadas causas. E, se vivo, ele sorriria no túmulo e diria em tom repressor: "eu avisei!"

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Gol do João

GOL DO JOÃO


A história que segue ouvi de canto de ouvido, de alguma boca mentirosa cheia de sotaque - não sei bem de quem nem em que contexto. Na verdade, não tenho certeza se realmente fui ouvinte ou expectador. Quem sabe personagem. Entretanto, de fato ela ocorreu e no caso de não ter ocorrido, não me tomem por mentiroso: Ainda há de acontecer. A liberdade está logo ali, por ser abstrata temos a mesma dificuldade em encontrá-la que o "velhinho" de Quintana, o qual, em vão, procura os óculos tendo-os na ponta do nariz.


Os termômetros marcavam trinta e dois graus Celsius em Porto Alegre. Mosquitos infernizavam a vida dos passantes do Parque da Redenção, os quais garimpavam artesanato e antiguidades entre goles d'água direto da garrafa de plástico e movimentos manuais afastando os insetos no calor dominical de um fevereiro portoalegrense. Jovens e idosos misturavam-se na platéia de algum show de rua que se alongava por minutos valiosos, colocando marcas de suor em baixo dos braços inquietos dos pedestres, os quais buscavam, receosos, moedas nos bolsos para ceder ao artista em caso de boa apresentação. A juventude aculturada sentava-se sobre a grama seca: Alguns sozinhos, com fones de ouvido e livros; outros, em grupos de piqueniques. Famílias vinham chegando com cuias, garrafas térmicas e bolas de futebol chutadas por agitadas e pequeninas perninhas de crianças.



João não era mais jovem, tinha cinquenta e tantos anos. Um dia fora uma criança de pernas agitadas, pequeninas e talentosas, que já haviam chutado muitas bolas de futebol tanto ali na redenção, com o pai, quanto nos campeonatinhos do bairro, onde já havia driblado outros moleques (inclusive mais velhos). Agora lhe doíam os joelhos e o tornozelo e era gordo e bigodudo. Há anos não chutava uma bola. Nem deveria saber como aplicar o elástico com sua canhota, drible que o fez famosos na Restinga. Vendia refrigerante e água - como a obrigação do ofício o obrigava a relembrar a todo o momento, nos gritos de "Refrigerante e água" que soltava de segundos em segundos. Não invejava as pessoas que passavam na Redenção evitando os mosquitos, não sentia nada. Simplesmente levava sua caixa térmica todos os dias para onde houvesse mais gente e bradava "refrigerante e água" repetidamente, trocando por garrafas dinheiro e por dinheiro um alento para a miséria. E sobrevida.


Neste fatídico domingo, joão sobrevivia na redenção. Comedido, animava-se levemente com o calor (já que vendia mais nestas oportunidades), porém, praguejava contra o mesmo devido ao infernal som de "z" que um mosquito imortal insistia em zunir em seu ouvido. Uma família caminhava lentamente em sua direção. Ele não sorriu fronte a possibilidade iminente de uma venda, desconfortável a fazer contato visual durante a caminhada familiar. O pai, um jovem de trinta e poucos, sugava o amargo de uma cuia escura sem adornos, enquanto a mãe vinha de mãos dadas com uma menininha que João supôs ser filha, vestida toda de rosa com cachos dourados. O filho mais velho (com não mais que dez anos) vinha em uma corrida infernal, driblando pedestres ao castigar com patadas vorazes a pelota já com todos os gomos arrancados - feito as que João tão bem havia tratado outrora - que voava em direções aleatórias.


E em um desses vôos aleatórios, a bola correu demais e parou nos pés, antigamente habilidosos, do vendedor. Ele parou a bola com estilo, com a planta do pé, e olhou para ela como há muito não olhava. Sorriu com um só canto da boca como nunca mais havia sorrido, levantou os olhos com o meio sorriso estampado no rosto, quase irreconhecível, e fixou-os no pequeno garoto, que se aproximava correndo furiosamente para recuperar sua bola. João reencontrara sua velha e inseparável amiga, da qual foi separado pelas surras do pai, pelo abandono a escola, pelo trabalho precoce, pela vida que é - de todos - fardo pesado, que aos poucos se ia sendo substituída por uma sobrevida, um purgatório. João reencontrou a bola.


A perna canhota e a redonda se tornaram um só (dia João que sempre o foram, só andavam meio de mal uma com a outra) e foi fácil "chapelar" o pequeno garoto em um toque e correr com a bola pelo flanco esquerdo, não parar ao ouvir o apito do árbitro gritando: "devolve a bola do meu guri!". Ir driblando, com giros à la Zidane, a multidão irrequieta não o desgastava: As dores foram aos poucos minguando e o fôlego foi crescendo. A cada drible, menos dor. A cada tabela com os bancos da praça, mais disposição. E quando passou a bola entre as pernas pesadas de um senhor que vendia livros em uma das barracas, desapareceu-lhe o bigode. Quando tabelou com a barraca de artesanato - matando no peito a devolução - já quase não possuía mais barriga.


Enquanto driblava todos ferozmente, ia diminuindo de tamanho feito mágica, os cabelos ralos iam encorpando-se, encobrindo a careca que herdara do pai (e o fazia parecer o próprio ao espelho). Quando havia driblado toda a feira com sua esguia perna esquerda, trocando passes milimétricos com as barracas companheiras, viu-se de frente para os arcos da Redenção: Duas enormes balizas que tornavam o gol quase inevitável. Ainda teve o capricho de aplicar o bom e velho elástico em um cachorro que o perseguia - puro enfeite - para só então fuzilar com a canhota e correr pelas ruas de Porto Alegre comemorando seu último e mais importante gol, a liberdade. E era novamente um garoto chutando bolas nas ruas de Porto Alegre.










Da Felicidade
Quantas vezes a gente, em busca de ventura
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura
Tendo-os na ponta do nariz

Mário Quintana, o gênio, só pra situar a introdução que se referia a essa poesia

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Simples Cidade


















Ando pelas ruas da cidade
e nada mais.
Minha maior dúvida é o próximo cinzeiro.
Minha maior e única dor é meu andar.
Todo o mais é nada.
E sou feliz como é Caeiro por não ser Pessoa
e coerente em um conceito simplista de coerência:
Não sigo ambições pois não as possuo

Não deixo a cidade andar por minhas ruas
pulsando e luzindo
(a cidade, não minhas ruas);
eu ando pelas ruas da cidade
cinza




*imagem 1: http://hawkeaglewolf.deviantart.com/art/Zoo-s-Path-160136825
*imagem 2: obra de Banksy
*deviantart fdp colocou uma marca d´agua pra eu não pegar mais imagens de lá 
* http://pt.wikipedia.org/wiki/Alberto_Caeiro esse é o Caeiro (pessoa é o Fernando)


segunda-feira, 19 de setembro de 2011

caralivro

Eduardo estava sentado na beira do mar, era uma tarde de quarta feira e ele matava aula. Poder estar à beiramar, sentado, trazia uma sensação de liberdade que fez valer a pena ter lutado contra seu computador até conseguir abandoná-lo, aos prantos (o computador), e ter batido a porta do quarto ouvindo os soluços de tristeza.


domingo, 4 de setembro de 2011

Eu e a nuvem

Eu e a nuvem

Vento,
vem tu e leva a nuvem
(vã sentinela - sentinelando nada)
sinto nela uma falta de sentido,
já que no ir e vir vão do vento
só vai e vem, nada mais.

Nuvem,
não tens vontades (eu tenho)
não tens virtudes (também)
flutuas vã e vais p'ra onde o vento vai
(eu vou para onde o vento vai).
Existes, núvem, nada mais; eu, sobrevivo.


Tenho muitas semelhanças com uma nuvem, mas também tenho diferenças. Não corremos atrás de objetivo algum, só ficamos flutuando ao sabor do vento (que expressão mais clichê "ao sabor do vento", mas não consegui fugir dela).
Por outro lado a núvem é um objeto inanimado. Menos que isso, é uma união gotículas d'água suspensa. E eu sou um cara de 21 anos. Ela pode flutuar lá, bem tranquila. Eu deveria correr atrás de alguma coisa. Mas é tão confortável ir pra onde o vento me empurra que não consigo fazer nada senão torcer pra que ele me leve no lugar certo.

O que já me leva a pensar que faço o que faço e sou como sou porque o mundo me fez ser assim. Portanto, se o mundo é meu "vento" figurado, todos seguimos o vento, já que nada além do mundo pode modular nossas ações (sendo que nosso cérebro faz parte do mundo). Mas isso é papo pra mais de hora... E é algo com o qual poucos iriam concordar, então acho que é mais legal publicar uma poesia que diz mais ou menos isso, já que ela abre margem para interpretações distintas, a poesia é muito mais criação de interpretação do que uma leitura de uma idéia pronta.

http://m0thyyku.deviantart.com/ - pela foto das nuvens