domingo, 13 de setembro de 2009

o cão e o alpinista

Havia, em minha rua (e há em quase todas) um cachorro vira-latas. Destes quase imortais, que têm uns dez apelidos diferentes. Amado pelas crianças e detestado pelos velhos ranzinzas e demais chatos, vivia perambulando pelo bairro (sem nunca se perder), comendo qualquer coisa e fazendo companhia aos mendigos. O que mais me chamava a atenção naquele cão era o fato dele correr atrás de carros.

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Ora, o carro está acima do cão na hierarquia das coisas mais perigosas, portanto, a lógica seria o cão fugir do carro, e não o contrário. Porém, esse animal dito irracional que morava em minha rua (ao qual eu chamava Batata, sem razão que eu me recorde) insistia em perseguir, em vão, automóveis vinte vezes mais pesados e potentes que ele, lutando pra capturar o incapturável. Creio que ele tenha morrido sem jamais alcançar nem ao menos o mais antigo fusquinha que pela rua passara.

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Conto agora, com a garantia de que a história agora contada terá uma intersecção interessante com a do cão, a história de um alpinista cujo sonho era subir o Everest:
Nasceu na minha rua e conhecia bem o cão, e após ter algum sucesso escalando montanhas, partiu com a promessa de retornar somente após escalar o monte mais alto do mundo.

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Voltou, o alpinista, dez anos após sua partida, completamente louco. Não sei de muito do que ocorreu-lhe fora da nossa rua, já que raramente dirigiu-me a palavra, mas sei que subiu o tão falado pico. Na verdade, as poucas palavras inteligíveis que dirigiu a mim após sua volta comprovaram o sucesso em sua escalada. Relato aqui, o episódio onde ocorreu nosso diálogo (ou seria monólogo?):
Saimos de nossas respectivas casas, eu e o alpinista, no mesmo exato momento, e vimos, ao mesmo tempo, o corpo de "Batata" estirado no chão. Não havia duvidas que não dormia, estava morto. Entreolhamo-nos, eu e o alpinista: Eu, curioso para saber sua reação; ele, com o habitual olhar descrente e cinzento. Abriu a boca de maneira estranha como se não falasse nada havia muito tempo e o ato de falar lhe fosse esquisito. "Feliz foi ele, que nunca escalou seu Everest. Eu, meu amigo (e agora já tinha um tom carinhoso - quase fraternal - na vóz), persegui durante dez anos um carro. E o alcancei. E sabe o quê?"
Balancei a cabeça negativamente me sentindo meio ridículo. Ele engoliu em seco com amargor, e continuou: "Porque não há nada pra fazer com aquela maldita montanha".

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O Mont Everest não é uma montanha, e ele não havia perseguido, de fato, um carro. Porém, não demorei a interpretar suas metáforas, e, assustado, entrei em casa com uma agonia que não passaria com a mera reflexão sobre aquilo que eu ouvira, desiludi-me com a falta de sentido da vida. Vi, pela janela, o alpinista caçando alguma utopia feito um cão atrás de carros, caminhando pelo bairro sem se perder, comendo qualquer coisa, acompanhando mendigos. Morreu um dia feito um cão, feito um ser humano, feito quem subiu o Everest.
E logo depois, desceu.