segunda-feira, 11 de junho de 2012

Gol do João

GOL DO JOÃO


A história que segue ouvi de canto de ouvido, de alguma boca mentirosa cheia de sotaque - não sei bem de quem nem em que contexto. Na verdade, não tenho certeza se realmente fui ouvinte ou expectador. Quem sabe personagem. Entretanto, de fato ela ocorreu e no caso de não ter ocorrido, não me tomem por mentiroso: Ainda há de acontecer. A liberdade está logo ali, por ser abstrata temos a mesma dificuldade em encontrá-la que o "velhinho" de Quintana, o qual, em vão, procura os óculos tendo-os na ponta do nariz.


Os termômetros marcavam trinta e dois graus Celsius em Porto Alegre. Mosquitos infernizavam a vida dos passantes do Parque da Redenção, os quais garimpavam artesanato e antiguidades entre goles d'água direto da garrafa de plástico e movimentos manuais afastando os insetos no calor dominical de um fevereiro portoalegrense. Jovens e idosos misturavam-se na platéia de algum show de rua que se alongava por minutos valiosos, colocando marcas de suor em baixo dos braços inquietos dos pedestres, os quais buscavam, receosos, moedas nos bolsos para ceder ao artista em caso de boa apresentação. A juventude aculturada sentava-se sobre a grama seca: Alguns sozinhos, com fones de ouvido e livros; outros, em grupos de piqueniques. Famílias vinham chegando com cuias, garrafas térmicas e bolas de futebol chutadas por agitadas e pequeninas perninhas de crianças.



João não era mais jovem, tinha cinquenta e tantos anos. Um dia fora uma criança de pernas agitadas, pequeninas e talentosas, que já haviam chutado muitas bolas de futebol tanto ali na redenção, com o pai, quanto nos campeonatinhos do bairro, onde já havia driblado outros moleques (inclusive mais velhos). Agora lhe doíam os joelhos e o tornozelo e era gordo e bigodudo. Há anos não chutava uma bola. Nem deveria saber como aplicar o elástico com sua canhota, drible que o fez famosos na Restinga. Vendia refrigerante e água - como a obrigação do ofício o obrigava a relembrar a todo o momento, nos gritos de "Refrigerante e água" que soltava de segundos em segundos. Não invejava as pessoas que passavam na Redenção evitando os mosquitos, não sentia nada. Simplesmente levava sua caixa térmica todos os dias para onde houvesse mais gente e bradava "refrigerante e água" repetidamente, trocando por garrafas dinheiro e por dinheiro um alento para a miséria. E sobrevida.


Neste fatídico domingo, joão sobrevivia na redenção. Comedido, animava-se levemente com o calor (já que vendia mais nestas oportunidades), porém, praguejava contra o mesmo devido ao infernal som de "z" que um mosquito imortal insistia em zunir em seu ouvido. Uma família caminhava lentamente em sua direção. Ele não sorriu fronte a possibilidade iminente de uma venda, desconfortável a fazer contato visual durante a caminhada familiar. O pai, um jovem de trinta e poucos, sugava o amargo de uma cuia escura sem adornos, enquanto a mãe vinha de mãos dadas com uma menininha que João supôs ser filha, vestida toda de rosa com cachos dourados. O filho mais velho (com não mais que dez anos) vinha em uma corrida infernal, driblando pedestres ao castigar com patadas vorazes a pelota já com todos os gomos arrancados - feito as que João tão bem havia tratado outrora - que voava em direções aleatórias.


E em um desses vôos aleatórios, a bola correu demais e parou nos pés, antigamente habilidosos, do vendedor. Ele parou a bola com estilo, com a planta do pé, e olhou para ela como há muito não olhava. Sorriu com um só canto da boca como nunca mais havia sorrido, levantou os olhos com o meio sorriso estampado no rosto, quase irreconhecível, e fixou-os no pequeno garoto, que se aproximava correndo furiosamente para recuperar sua bola. João reencontrara sua velha e inseparável amiga, da qual foi separado pelas surras do pai, pelo abandono a escola, pelo trabalho precoce, pela vida que é - de todos - fardo pesado, que aos poucos se ia sendo substituída por uma sobrevida, um purgatório. João reencontrou a bola.


A perna canhota e a redonda se tornaram um só (dia João que sempre o foram, só andavam meio de mal uma com a outra) e foi fácil "chapelar" o pequeno garoto em um toque e correr com a bola pelo flanco esquerdo, não parar ao ouvir o apito do árbitro gritando: "devolve a bola do meu guri!". Ir driblando, com giros à la Zidane, a multidão irrequieta não o desgastava: As dores foram aos poucos minguando e o fôlego foi crescendo. A cada drible, menos dor. A cada tabela com os bancos da praça, mais disposição. E quando passou a bola entre as pernas pesadas de um senhor que vendia livros em uma das barracas, desapareceu-lhe o bigode. Quando tabelou com a barraca de artesanato - matando no peito a devolução - já quase não possuía mais barriga.


Enquanto driblava todos ferozmente, ia diminuindo de tamanho feito mágica, os cabelos ralos iam encorpando-se, encobrindo a careca que herdara do pai (e o fazia parecer o próprio ao espelho). Quando havia driblado toda a feira com sua esguia perna esquerda, trocando passes milimétricos com as barracas companheiras, viu-se de frente para os arcos da Redenção: Duas enormes balizas que tornavam o gol quase inevitável. Ainda teve o capricho de aplicar o bom e velho elástico em um cachorro que o perseguia - puro enfeite - para só então fuzilar com a canhota e correr pelas ruas de Porto Alegre comemorando seu último e mais importante gol, a liberdade. E era novamente um garoto chutando bolas nas ruas de Porto Alegre.










Da Felicidade
Quantas vezes a gente, em busca de ventura
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura
Tendo-os na ponta do nariz

Mário Quintana, o gênio, só pra situar a introdução que se referia a essa poesia

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